quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Profissão


O CONGRESSO NACIONAL DOS PRÁTICOS (1922)
Desde o final do século XIX até a metade do século XX, a profissão médica passou, no Brasil, por uma crise que continha pelo menos duas marcas: a redefinição da base cognitiva da medicina e a reestruturação do mercado de serviços de assistência médica (Donnangelo, 1975). Os sinais desta crise podem ser percebidos em diferentes fontes documentais. A fonte primária em discussão foi escolhida por encerrar uma rica documentação que, ainda não foi explorada. Nela as questões do monopólio do conhecimento e do domínio do mercado de trabalho médico se evidenciaram. Este evento situa-se em uma conjuntura histórica em que o debate sobre o sentido e o limite da atuação do Estado na área da assistência médica começava a ocupar o cenário político (Hochman, 1993).
O "Congresso Nacional dos Práticos", realizado no Rio de Janeiro de 30 de setembro a 8 de outubro de 1922, foi um forum onde as questões relacionadas com a reordenação do trabalho médico foram debatidas. A Imprensa Nacional publicou seus 63 relatórios, contendo os mais variados assuntos, em suas "Actas e Trabalhos". Seu orador oficial, Oscar Silva Araújo, distinguiu este congresso dos anteriores, afirmando que nele não seriam discutidos os "grandes problemas médicos e as questões controversas da ciência", mas sim a "crise (grifo nosso) muito séria e com tendência a se agravar cada vez mais" por que passavam os médicos (Actas, 1923: 17).
Uma breve comparação entre os anais dos congressos médicos promovidos pela Academia Nacional de Medicina e pela Sociedade de Medicina e Cirurgia no final do século XIX e início do século XX, com este realizado em 1922, leva-nos a concordar com a primeira parte das considerações feitas pelo Dr. Silva Araújo. O mesmo orador apontou a causa e a solução para a denominada crise que entendia estar ocorrendo na profissão médica, afirmando: "Em uma época em que os adversários da profissão são as coletividades (grifo nosso), faz-se mister que o sindicato que se organiza contra elas sinta-se forte, coeso, capaz de agir e vencer" (Actas, 1923: 18). A classificação das "coletividades" que reivindicavam um sistema de assistência médica como "adversários da profissão (médica)" evidencia a pouca ou nenhuma aceitação dessa ação coletiva pelo orador.
O termo coletividades refere-se, neste caso, às organizações mutualistas e filantrópicas da sociedade civil que se multiplicaram no início do século no Brasil. Não se trata da medicina estatal, expressa inicialmente com a implementação das "Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS) que passaram a se constituir com a promulgação da lei Eloy Chaves (1923).
O relator Felício Torres, por sua vez, não só defendeu a constituição de um sindicato médico, como também propôs que esta organização adotasse "as resoluções do atual congresso no que se refere aos diplomas estrangeiros, à limitação das matrículas, à luta contra o curandeirismo, contra o charlatanismo profissional, instituindo, por exemplo, um comitê para a denúncia dos indignos e indesejáveis" (Actas, 1923: 157). Como podemos observar, a agenda das lutas que a associação profissional médica deveria empreender diferia em muito daquela que estava sendo implementado por seus contemporâneos anarquistas ou comunistas. Além disso, a organização dos interesses profissionais dos médicos envolvia questões relacionadas com o domínio do conhecimento e com o monopólio do mercado de serviços de assistência médica que entendiam estar abalado.
Fernando Magalhães apresentou, ao encerrar o evento, "as bases para a organização da futura associação". Esta associação deveria "pugnar pela garantia do exercício clínico digno e próspero". Segundo consta nos Anais do Congresso, "esta proposta foi recebida com entusiásticos aplausos e geral aprovação do Congresso" (Actas, 1923: 618).
Reunindo boa parte da elite médica, o "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) nos parece ser uma fonte apropriada para a compreensão mais precisa do debate que estava sendo travado, no seio da categoria médica, a respeito das alterações que sua base cognitiva a que seu mercado de trabalho estavam sofrendo com a iminente entrada do Estado na gestão dos serviços de assistência médica. A profissão médica passava, então, por um processo de reestruturação. Uma das estratégias encetadas por parte da elite profissional, resistente à ação das coletividades, manifestou-se com a criação do "Sindicato Médico Brasileiro", cinco anos mais tarde (Pereira & Maio, 1992).

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