O CONGRESSO NACIONAL DOS
PRÁTICOS (1922)
Desde o final do século
XIX até a metade do século XX, a profissão médica passou, no Brasil, por uma
crise que continha pelo menos duas marcas: a redefinição da base cognitiva da
medicina e a reestruturação do mercado de serviços de assistência médica
(Donnangelo, 1975). Os sinais desta crise podem ser percebidos em diferentes
fontes documentais. A fonte primária em discussão foi escolhida por encerrar
uma rica documentação que, ainda não foi explorada. Nela as questões do
monopólio do conhecimento e do domínio do mercado de trabalho médico se
evidenciaram. Este evento situa-se em uma conjuntura histórica em que o debate
sobre o sentido e o limite da atuação do Estado na área da assistência médica
começava a ocupar o cenário político (Hochman, 1993).
O "Congresso
Nacional dos Práticos", realizado no Rio de Janeiro de 30 de setembro a 8
de outubro de 1922, foi um forum onde as questões relacionadas com a
reordenação do trabalho médico foram debatidas. A Imprensa Nacional publicou
seus 63 relatórios, contendo os mais variados assuntos, em suas "Actas e
Trabalhos". Seu orador oficial, Oscar Silva Araújo, distinguiu este
congresso dos anteriores, afirmando que nele não seriam discutidos os
"grandes problemas médicos e as questões controversas da ciência",
mas sim a "crise (grifo nosso) muito séria e com tendência a se agravar
cada vez mais" por que passavam os médicos (Actas, 1923: 17).
Uma breve comparação
entre os anais dos congressos médicos promovidos pela Academia Nacional de
Medicina e pela Sociedade de Medicina e Cirurgia no final do século XIX e
início do século XX, com este realizado em 1922, leva-nos a concordar com a
primeira parte das considerações feitas pelo Dr. Silva Araújo. O mesmo orador
apontou a causa e a solução para a denominada crise que entendia estar
ocorrendo na profissão médica, afirmando: "Em uma época em que os
adversários da profissão são as coletividades (grifo nosso), faz-se mister que
o sindicato que se organiza contra elas sinta-se forte, coeso, capaz de agir e
vencer" (Actas, 1923: 18). A classificação das "coletividades"
que reivindicavam um sistema de assistência médica como "adversários da
profissão (médica)" evidencia a pouca ou nenhuma aceitação dessa ação
coletiva pelo orador.
O termo coletividades
refere-se, neste caso, às organizações mutualistas e filantrópicas da sociedade
civil que se multiplicaram no início do século no Brasil. Não se trata da
medicina estatal, expressa inicialmente com a implementação das "Caixas de
Aposentadoria e Pensão (CAPS) que passaram a se constituir com a promulgação da
lei Eloy Chaves (1923).
O relator Felício Torres,
por sua vez, não só defendeu a constituição de um sindicato médico, como também
propôs que esta organização adotasse "as resoluções do atual congresso no
que se refere aos diplomas estrangeiros, à limitação das matrículas, à luta
contra o curandeirismo, contra o charlatanismo profissional, instituindo, por
exemplo, um comitê para a denúncia dos indignos e indesejáveis" (Actas,
1923: 157). Como podemos observar, a agenda das lutas que a associação
profissional médica deveria empreender diferia em muito daquela que estava
sendo implementado por seus contemporâneos anarquistas ou comunistas. Além
disso, a organização dos interesses profissionais dos médicos envolvia questões
relacionadas com o domínio do conhecimento e com o monopólio do mercado de
serviços de assistência médica que entendiam estar abalado.
Fernando Magalhães
apresentou, ao encerrar o evento, "as bases para a organização da futura
associação". Esta associação deveria "pugnar pela garantia do
exercício clínico digno e próspero". Segundo consta nos Anais do
Congresso, "esta proposta foi recebida com entusiásticos aplausos e geral
aprovação do Congresso" (Actas, 1923: 618).
Reunindo boa parte da
elite médica, o "Congresso Nacional dos Práticos" (1922) nos parece
ser uma fonte apropriada para a compreensão mais precisa do debate que estava
sendo travado, no seio da categoria médica, a respeito das alterações que sua base
cognitiva a que seu mercado de trabalho estavam sofrendo com a iminente entrada
do Estado na gestão dos serviços de assistência médica. A profissão médica
passava, então, por um processo de reestruturação. Uma das estratégias
encetadas por parte da elite profissional, resistente à ação das coletividades,
manifestou-se com a criação do "Sindicato Médico Brasileiro", cinco
anos mais tarde (Pereira & Maio, 1992).
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