quarta-feira, 12 de outubro de 2011


 A descoberta da doença de Chagas


          Há 90 anos, Chagas apresentou à comunidade científica e médica um pacote de novidades: um novo parasita (o protozoário Trypanosoma cruzi), transmitido por um inseto hematófago (que se alimenta de sangue) a diferentes vertebrados, e uma série de sintomas associados à infecção humana daquele protozoário.
          Chagas acabava de "inventar" uma nova doença tropical, a tripanossomíase americana, batizada depois de doença de Chagas. Reconhecido imediatamente no Brasil e no mundo, Chagas recebeu prêmios e honrarias.
          Em 1912, Chagas ganhou o Prêmio Schaudinn, conferido a cada quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo (Alemanha) à mais significativa contribuição em protozoologia.
Os concorrentes de Chagas eram Ehrlich, Roux, Metchnikoff, Laveran, Nicolle e Leishman. Laveran ganhou o Nobel em 1907, Ehrlich e Metchnikoff foram laureados em 1908 e Nicolle, em 1928. Os membros da comissão julgadora eram outras tantas celebridades, que incluíam Koch (Nobel em 1905), Ross (Nobel em 1902) e Golgi (Nobel em 1906).
          De 1912 até praticamente sua morte, Chagas recebeu convites e honrarias de muitas instituições estrangeiras.
Mas, se no exterior a receptividade a Chagas foi grande, no Brasil a relação da comunidade médica e científica com a descoberta e seu descobridor foi sempre ambivalente: não há dúvidas de que houve muita euforia no momento em que a descoberta foi divulgada.
          Em 1910, Chagas foi aclamado membro titular da Academia Nacional de Medicina e foi escolhido para ocupar um cargo de chefia no Instituto Soroterápico de Manguinhos. Depois que Oswaldo Cruz morreu, em fevereiro de 1917, Chagas herdou a diretoria do instituto. Em 1920, quando foi criado o Departamento de Saúde Pública, Chagas foi nomeado seu primeiro diretor, acumulando cargos.
          O prestígio de Chagas tanto na medicina experimental como na saúde pública parecem evidentes. No entanto, existiu desde muito cedo um grupo de descontentes.

          O "grupo anti-Chagas"
          Cada novo cargo, honraria ou indicação no Brasil reforçava o "grupo anti-Chagas". Não gostavam das idéias de Chagas, dos critérios de mérito que ele e Oswaldo Cruz instituíram, das relações de Chagas com instituições estrangeiras e nem da sua condução dos negócios da saúde pública.
Quando o Departamento de Saúde Pública foi criado, o poderoso Afrânio Peixoto tinha a pretensão de dirigi-lo. Com a nomeação de Chagas, Afrânio tornou-se o mais virulento inimigo do descobridor da tripanossomíase.
          Foi Afrânio Peixoto quem, dois anos depois, abriu a chamada "disputa da Academia Nacional de Medicina", em que acusações sérias foram feitas em reunião daquela casa em novembro de 1922.
Chagas solicitou que uma comissão julgasse as acusações que lhe faziam: a de que a doença não era consistente, de que ela não tinha relevância epidemiológica e de que ele próprio não seria nem mesmo o seu descobridor, cabendo o título a Oswaldo Cruz.
          A comissão trabalhou de forma turbulenta, de 1922 a 1923. Finalmente, em 6 de dezembro de 1923, a comissão concluiu favoravelmente a Chagas.

          O desprestígio da descoberta
          Depois da disputa da academia, a doença de Chagas caiu no esquecimento: não foi mais discutida e foi pouco pesquisada. Sumiu dos currículos médicos e não foi mais diagnosticada nos hospitais.
Só depois da morte de Chagas, em 1934, é que um vigoroso movimento de restauração do interesse na doença vingou. A partir daí, milhares de novos casos foram diagnosticados e o alcance epidemiológico da doença pôde ser compreendido.
A pesquisa cresceu e gerou claros casos de sucesso científico tanto no controle da doença, em clínica e, mais recentemente, em biologia molecular.
          Talvez jamais saibamos exatamente o que impediu que Chagas viesse a ser o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nobel. Só o que sabemos é que nenhum brasileiro esteve tão perto dele.

Notas:
(1) Salvador Mazza - su vida y su obra - redescobridor de la enfermedad de Chagas. J. P. Sierra-Iglesias. 1990. San Salvador de Jujuy, Universidad Nacional de Jujuy, 527 p.
(2) "Carlos Chagas: Prêmio Nobel em 1921". João Carlos Pinto Dias. Conferência Nacional de Saúde On Line. (http://www.datasus.gov.br/cns/documentos/Chagas.htm
Uma pesquisa completa1999 - por Ricardo Bonalume Neto, especial para a Folha.
Fonte: www.folha.com.br
Reportagem publicada na Folha de São Paulo em 7 de fevereiro de 1999.
          É muito provável que Carlos Chagas não tenha ganho o Nobel devido à inveja e à intriga de outros brasileiros. Mas o tempo fez justiça a ele e colocou seus detratores no esquecimento, especialmente o misto de escritor, médico e político, Afrânio Peixoto.
          Chagas descobriu uma doença que afeta hoje 18 milhões de pessoas na América Latina. Seus sucessores constituem um dos grupos mais dinâmicos da pesquisa no país.
          Peixoto, apesar de sua carreira de medalhão - membro da Academia Brasileira de Letras, diretor de hospital, reitor de universidade, deputado federal -, quando muito é lembrado em livros de história da literatura como um "escritor menor", um "epígono" (um banalizador de uma corrente literária).
          Questionado se havia algum brasileiro que poderia ter merecido ganhar o prêmio mais importante da ciência, o pesquisador e jornalista José Reis, colunista da Folha, respondeu rapidamente, em uma entrevista em 1990: "Um é o Carlos Chagas, que fez uma das maiores descobertas científicas do mundo. Uma das mais completas: descobriu a doença, o parasita e o transmissor".
          A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a doença de Chagas mate 45 mil pessoas a cada ano. É portanto uma área de pesquisa relevante.

          Atraso na pesquisa
          A recusa em reconhecer a doença e começar seu estudo, graças aos detratores de Carlos Chagas, causou alguns anos de atraso não só na pesquisa científica, como também nas medidas sociais de controle do problema. O combate ao vetor, o inseto barbeiro, continua sendo hoje a melhor maneira de evitar a disseminação.
          O protozoário causador da doença é um alvo difícil. Há drogas em uso para tratar a etapa inicial da doença, mas não há terapia para a fase crônica. Cerca de 30% dos doentes apresentam complicações cardíacas. O parasita também afeta o fígado, o baço e a pele.
A Federação das Sociedades de Biologia Experimental realiza todo ano em Caxambu (MG) uma concorrida reunião internacional sobre os avanços na pesquisa.
          Quando a equipe liderada por Júlio Urbina, do Instituto Venezuelano de Investigações Científicas, de Caracas, descobriu uma terapia promissora para o mal de Chagas, a pesquisa foi relatada na revista norte-americana "Science", uma das mais importantes do planeta. Mas, antes disso, ele já havia comunicado resultados preliminares para seus colegas da área na reunião de Caxambu.
          Até os ônibus espaciais americanos já foram recrutados para o estudo da doença. Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos, da USP (Universidade de São Paulo), enviou ao espaço cristais de proteínas do parasita. No ambiente espacial, os cristais crescem melhor, tornando mais fácil a identificação de sua estrutura molecular.
          Em compensação, a obra de Afrânio Peixoto hoje só é lida por poucos. Comentando algumas de suas tentativas literárias, Alfredo Bosi, autor do clássico "História Concisa da Literatura Brasileira", foi taxativo: "A verdade é que nunca ultrapassaram os lugares-comuns do provincianismo cultural de festejado acadêmico".

Doença afeta 18 países
          Nascido em 1878, em Oliveira (MG), Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas descobriu a doença tripanossomíase americana, depois conhecida como doença de Chagas, em 1909.
          A descoberta da enfermidade e seu estudo foram realizados pelo pesquisador praticamente sozinho.
Atualmente, apesar dos programas de controle da transmissão, a doença ocorre em 18 países latino-americanos e ameaça 70 milhões de pessoas.
          O ciclo da doença começa quando o barbeiro se alimenta e imediatamente defeca. Os parasitas presentes nas fezes penetram a perfuração feita pela picada e chegam à circulação sanguínea. Após uma fase aguda, desenvolve-se um estágio crônico. Ainda não há cura para a doença. (MC)

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